Fica na rua comprida, sem curvas, moram vizinhos que se entreajudam.
A mãe solteira, empanada com o filho, pneu furado, vem o Afonso, o idoso das anedotas picantes, ajuda-a a mudar o pneu.
O café, onde vamos beber o cafezinho, de braço dado, vende pão gostoso e sopa ‘tranca da barriga’ para quem tem preguiça.
Passo dias na horta, converso com os pássaros, não estão em gaiolas; quando sacho, atiro-lhes minhocas.
Ai, as minhas rosas do jardim, o perfume vai até ao fundo da rua.
No meu quarto, limpo o pó às molduras, beijo-as com ósculo ingénuo.
Nalguns fins de semana, casa cheia, os mais novos pedem-me que lhes conte as histórias da meninice. Depois, tachos e panelas para esfregar…
O Sr. Presidente da Junta mandou fazer um parque, gosto de lá passar sempre que vou à mercearia da filha da Ti Joana (que Deus a tenha!). As árvores ainda são pequenas, imagino os namorados no banco de jardim, à sombra.
Umas ‘dorezitas’, tomo produtos naturais para não me fazer mal ao estômago. Gosto mesmo é quando o meu marido me faz uma (desajeitada!) massagem nos ombros.
Ainda tenho alguma vista para fazer renda e tricot. No Natal, é prenda para filhos, genros, noras e netos.
Aperalto-me para ir à igreja ao domingo. Bebemos um copito à refeição. Jogamos cartas e petanca com os da nossa idade. Deixamos uma cesta de frutas ao Afonso. O carro faz-nos as vontadinhas.
A minha casa é bem iluminada, bate-lhe o sol o dia todo, tem um poço de água, elixir da jovialidade.
As minhas frangas riem quando lhes levo milho no avental.
A lareira, o sofá e a mantinha, a conjugação perfeita, no inverno.
Hoje, decidi fazer salada de fruta com as laranjas do quintal e um bolo de iogurte, vêm cá as eternas amigas.
E lá vem o marido resmungar porque me esqueci de apagar a luz da casa de banho, dou-lhe um beijo à descarada, só para o calar. Passa os dias na oficina da garagem, arranjos à medida. Por vezes, faz fiado ou diz que a conta está paga, é o seu bom coração! Tem fetiche do computador e um blogue (desde que foi à universidade dos velhos). Eu entretenho-me a remendar meias e a subir bainhas.
A casa dos meus sonhos tem trabalho e vida, chama-se LAR.
E eu aqui, nesta cadeira, pensativa, solitária!
Tanto desejava ter a minha cómoda, as molduras e o meu colchão!
Carrego ao peito a saudade de ti, que já te foste.
Visto-me de negro, tenho alma chorosa. A minha bengala testemunha desgraça. O corpo envelheceu, mas o espirito continua o meu. É este ‘Eu’ que ninguém vê! Estou neste depósito porque havia muitos perigos na minha casa (risos tristonhos), que estupidez, andava nela até de olhos fechados!
Dizem-me que não têm muito tempo para cá vir. Tenho medo de não ter mais histórias, eles gostam é daquela coisa sempre agarrada aos dedos!
Esta casa é mórbida, vai-se um de cada vez, a próxima será a minha.
Quem dera a oficina viva do meu marido para consertar a minha vida! Preferia as minhas couves, alfaces, batatas a esta comida de engodo. Não me queixo dos colegas, tem cada um o seu fado. Alguns foram deixados como casca de maçã para o lixo, ela serviria para a compostagem… E aqui a pensar no chá dessa casca com canela…
Os funcionários suplicam para ver o meu sorriso, dizem que é bonito (tentam alegrar-me!).
A Serafina vem de táxi, ver-me. É ela que dá comer ao Estapafúrdio, o cão guardador da minha casa.
Ossos desengonçados, espreito pela janela, só prédios em volta, passa um tipo todo suado e uma mulher a passear o cão.
O melhor era ser pássaro para voar até à minha casa.
Neste dia da saudade, dedico este texto a todos os idosos que vivem em solidão e que ainda têm tanto para dar! Não os esqueçamos!
2 opiniões sobre “A Casa dos meus Sonhos”
Maravilhosa homenagem!..
Muito obrigada, Isabel! Abraço enorme.