Lembrei-me no outro dia de um desenho que fiz na escola. Devia estar no 8º ano. Reproduzi à vista um postal de Natal da Unicef. A professora classificou-o de «Elevado». Ainda guardo esse desenho. Um rosto de criança, semblante triste e mão estendida.
Passaram-se os anos.
No Natal abrem-se os corações e as dádivas multiplicam-se quem sabe para justificar o afastamento ao longo do ano. Há abundância de comida, numa consoada recheada ou a falta dela. As lareiras queimam a lenha talvez para aquecer os gestos, os olhares de quem não se via há longo tempo.
Natal de presentes do mais barato ao mais caro, porque o ter sobrepõe-se ao ser. (Essa coisa do ser está fora de moda!). Pode até ser-se uma pessoa agreste mas os presentes desculpabilizam atitudes, quando o arrependimento e o perdão deveriam andar de mãos dadas. Brinquedos – muitos (futilidades?). Crianças felizes por instantes. Elas queriam era o pai e a mãe a brincar com elas mas não há tempo!
Multiplicam-se os anúncios de perfumes para ele e para ela, de bebidas alcoólicas, de chocolates, de tecnologia e de promissoras lotarias. E por falar em anúncios, há um que marca indubitavelmente a minha geração: «Fantasias de Natal». Uma menina loira interagindo com o idoso num cenário caloroso. Empresas anseiam por conseguir o anúncio mais comovente para chegar a um maior número de pessoas.
Natal também é labuta, acrescida para alguns, que acolhem os feridos graves, urgentes, porque a urgência da chegada ao destino justificava a velocidade.
Um Natal onde tudo resplandece, ou quase tudo, porque nem tudo está à vista. A tensão agrava-se nas famílias separadas por divórcios.
As montras embelezadas atraem os clientes até ao final do fecho das lojas seguindo-se a frustração pela descida do saldo na conta do banco.
As canções natalícias, ternurentas, uma das tradições mais antigas no mundo cristão. E há tradições que teimam em ficar. O presépio, a árvore de Natal, as decorações de azevinho, de guirlandas, de luzinhas, o bolo-rei (falta-lhe o brinde, imperam as normas europeias), as meias na chaminé. Para os católicos a missa do galo. Um pai Natal em cada centro comercial, rodeado de crianças, disparam-se flashes para mais tarde recordar.
Os postais de natal, esses têm vindo a cair em desuso. Queixam-se as papelarias, ganham as operadoras de telemóveis.
Afinal de contas é Natal… Um Natal de todos sem que todos o denotem ou persintam belo, porque Natal, hoje, também é sinónimo de tristeza. Ouvi o relato de uma amiga enfermeira: «pessoas institucionalizadas, não têm ninguém que as vão visitar, não há um telefonema». Os contrastes amplificam-se. A geada da rua passou para as pessoas? Os afagos de alguns são o alvo de tantos outros. A solidão perfura-lhes o coração.
A vida humana perde o seu valor ante atos de suicídio acrescidos nesta época. Onde cabe a prevenção? Num anúncio televisivo ao longo do ano que toque o íntimo dos telespectadores? É dever do Estado criando leis? Deverá incidir nas Instituições? Em cada um de nós?
Como leitores da Bíblia sabemos que não devemos fechar a nossa mão para os pobres (Dt 15. 7,8), defendendo a causa dos mais desfavorecidos (Pr 31:20), como o caso dos órfãos, viúvas, deficientes, idosos. Amor «envolve risco e sacrifício» tal como nos diz Timothy Keller na sua obra Justiça Generosa porque quando «dizemos ‘Não posso ajudar’, isso normalmente significa ‘Não posso ajudar ninguém sem me prejudicar, sem atrapalhar o meu estilo de vida’.
Volto a olhar para o meu desenho marcado pelo tempo e penso que apesar do tempo passar, continuamos a perceber crianças de semblante triste, sozinhas, num clima gélido de mão estendida…
Texto publicado na Evellis Magazine Portugal em Dezembro de 2017, pág 88
Referências:
Keller, Timothy; Justiça generosa: a graça de Deus e a justiça social; tradução Eulália Pacheco Kregness. São Paulo: Vida Nova, 2013.